TOMBAMENTO.
FUNÇÃO ADMINISTRATIVA TÍPICA DO PODER EXECUTIVO. EDIÇÃO DE LEI PARA PROTEÇÃO DE
BENS HISTÓRICOS. IMPROPRIEDADE, SOB PENA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO
E HARMONIA DOS PODERES DA UNIÃO
SP, 21/10/2013
Conforme
se infere do art. 23, inc. III, da Constituição Federal, cabe à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “proteger os documentos, as obras
e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as
paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”.
Para
alcançar tal objetivo, dentre outros instrumentos juridicamente existentes,
destaca-se o instituto do tombamento, constitucionalmente previsto no art. 216,
§ 1º, da Carta Magna.
Nas
palavras da jurista Lúcia Valle Figueiredo, in verbis:
“Tombamento,
de maneira singela, é ato administrativo constitutivo por meio do qual a
Administração Pública, ao reconhecer, à luz de manifestações técnicas, que
determinado bem se enquadra nos pressupostos constitucionais e legais e, no
confronto do caso concreto com os valores resguardados pela Constituição,
verifica a necessidade de conservá-lo e determina sua preservação, com a
consequente inclusão no livro do tombo” (Curso de direito administrativo.
9. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 314).
Nesse
passo, esclareça-se que o procedimento para inscrição de bens
histórico-culturais no livro do tombo foi devidamente disciplinado pelo
Dec.-Lei nº 25/1937, norma nacional ainda em vigência, restando latente, em seu
teor, que o competente processo administrativo é conduzido por órgão
vinculado ao Poder Executivo. Vejamos alguns excertos que confirmam tal
exegese, in verbis:
“Art.
5º O tombamento dos bens pertencentes à União, aos Estados e aos Municípios se
fará de ofício, por ordem do diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, mas deverá ser notificado à entidade a quem pertencer, ou
sob cuja guarda estiver a coisa tombada, a fim de produzir os necessários
efeitos.
…..................................................................................................
Art.
9º O tombamento compulsório se fará de acôrdo com o seguinte processo:
1) o
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, por seu órgão competente,
notificará o proprietário para anuir ao tombamento, dentro do prazo de quinze
dias, a contar do recebimento da notificação, ou para, si o quisér impugnar,
oferecer dentro do mesmo prazo as razões de sua impugnação.
…..................................................................................................
Art. 13. O tombamento definitivo dos bens de
propriedade partcular será, por iniciativa do órgão competente do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
transcrito para os devidos efeitos em livro a cargo dos oficiais do registro de
imóveis e averbado ao lado da transcrição do domínio” (destacou-se).
Grife-se que
não é outra a direção da doutrina pátria, melhor prelecionada pelo jurista
Adilson de Abreu Dallari, in verbis:
"Parece
evidente que o tombamento só pode emergir de um procedimento administrativo no
qual fiquem perfeitamente delineados seus motivos determinantes e no qual o
proprietário do bem atingido possa se manifestar, seja para anuir, seja para
contestar a qualidade atribuída à sua propriedade. Isso seria impossível se o
tombamento fosse feito por lei (Tombamento. RDP. vol. 86-39)” (TJSP –
ADIn. nº 45.502-0/0) (destacou-se).
Restando
caracterizado, portanto, que o tombamento é uma declaração estatal, editada ao
cabo de um processo administrativo conduzido pelo Poder Executivo, conclui-se
que essa modalidade de intervenção na propriedade privada não poderá ocorrer
por meio de uma lei, sob pena de caracterização de invasão de esfera de atuação
privativa do Executivo.
Com
efeito, além de não receber tal função pelo Dec.-Lei nº 25/1937 ou pela Carta
Magna para intervir na propriedade privada, não detém a Edilidade o
aparelhamento administrativo necessário para conduzir um processo deste jaez,
uma vez que, além da operacionalização deste, necessitará, ainda, deter um
corpo técnico especializado para avaliar o valor histórico-cultural dos bens
objeto de tombamento.
Outrossim,
não nos parece que o processo administrativo, conduzido pelo competente órgão
vinculado ao Poder Executivo, deva ser submetido ao Legislativo para o
tombamento ser implementado por meio de lei, haja vista que tal intervenção na
propriedade privada, necessária para proteger um bem histórico em prol da
sociedade, pode não ser concretizada pela Edilidade, uma vez que tal proteção
pode ser inconveniente para os diversos interesses que permeiam seu Plenário.
Sobre
o tema, ensina Diogenes Gasparini, in verbis:
“O
tombamento, ato administrativo que declara e registra em livro próprio o valor
histórico, cultural, turístico e paisagístico de certo bem para preservá-lo,
pode ser: I – de ofício, II – voluntário, e III – compulsório,
consoante a legislação federal. O primeiro incide sobre bens públicos; o
segundo, sobre bens particulares, com a anuência do proprietário; e o terceiro
recai sobre bem particular e contra a vontade do proprietário. Em qualquer
hipótese, sua decretação exige a observância do devido processo legal. Assim,
não nos parece que possa ser decretado por lei” (Direito administrativo.
17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 895) (destacou-se).
Da
mesma forma, preleciona José dos Santos Carvalho Filho, in verbis:
O tombamento é ato tipicamente administrativo, através
do qual o Poder Público, depois de concluir formalmente no sentido de que o bem
integra o patrimônio público nacional, intervém na propriedade para protegê-lo
de mutilações e destruições. Trata-se de atividade administrativa, e, não,
legislativa. Além do mais, o tombamento só é definido após processo
administrativo, no qual, freqüentemente, há conflito de interesses entre o
Estado e o particular. Resulta daí que o ato de tombamento é passível de exame
quanto à legalidade de seus vários elementos, como o motivo, a finalidade, a
forma etc. Ora, a lei que decreta um tombamento não pressupõe qualquer
procedimento prévio, de modo que fica trancada para o proprietário qualquer
possibilidade de controle desse ato, o que seria absurdo mesmo diante da
circunstância de ser a lei, nesse caso, qualificada como lei de efeitos
concretos, ou seja, a lei que, embora tenha a forma de lei, representa
materialmente um mero ato administrativo” (Manual de direito administrativo.
22. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 764).
Nesse sentido, não é outro o entendimento dos
Tribunais. Vejamos, in verbis:
“AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DISTRITAL Nº 1.713, DE 3.9.1997. QUADRAS
RESIDENCIAIS DO PLANO PILOTO DA ASA NORTE E DA ASA SUL. ADMINISTRAÇÃO POR
PREFEITURAS OU ASSOCIAÇÕES DE MORADORES. TAXA DE MANUTENÇÃO E CONSERVAÇÃO.
SUBDIVISÃO DO DISTRITO FEDERAL. FIXAÇÃO DE OBSTÁCULOS QUE DIFICULTEM O TRÂNSITO
DE VEÍCULOS E PESSOAS. BEM DE USO COMUM. TOMBAMENTO. COMPETÊNCIA DO PODER
EXECUTIVO PARA ESTABELECER AS RESTRIÇÕES DO DIREITO DE PROPRIEDADE.
VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTS. 2º, 32 E 37, INC. XXI, DA CONSTITUIÇÃO DO
BRASIL. 1. A Lei nº 1.713 autoriza a divisão do Distrito Federal em unidades
relativamente autônomas, em afronta ao Texto da Constituição do Brasil – art.
32 – que proíbe a subdivisão do Distrito Federal em Municípios. 2. Afronta a
Constituição do Brasil o preceito que permite que os serviços públicos sejam
prestados por particulares, independentemente de licitação (art. 37, inc. XXI,
da CB/1988). 3. Ninguém é obrigado a associar-se em "condomínios" não
regularmente instituídos. 4. O art. 4º da lei possibilita a fixação de
obstáculos a fim de dificultar a entrada e saída de veículos nos limites
externos das quadras ou conjuntos. Violação do direito à circulação, que é a
manifestação mais característica do direito de locomoção. A Administração não
poderá impedir o trânsito de pessoas no que toca aos bens de uso comum. 5. O
tombamento é constituído mediante ato do Poder Executivo que estabelece o
alcance da limitação ao direito de propriedade. Incompetência do Poder
Legislativo no que toca a essas restrições, pena de violação ao disposto no
art. 2º da Constituição do Brasil. 6. É incabível a delegação da execução
de determinados serviços públicos às "Prefeituras" das quadras, bem
como a instituição de taxas remuneratórias, na medida em que essas
"Prefeituras" não detêm capacidade tributária. 7. Ação direta julgada
procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 1.713/1997 do
Distrito Federal” (STF – ADIn. nº 1.706/DF – Relatoria: Min. Eros Grau)
(destacou-se).4/5
“ADIN. Lei municipal que declara parte integrante
do patrimônio turístico e cultural do Município, para fins de inventário e
tombamento, as ossadas de baleia enterradas nas praias Grande e do Félix. Vício
de iniciativa. Usurpação de competência privativa do Chefe do Executivo.
Ação procedente (inteligência dos arts. 5º, 24, § 2º, e 14, todos da
Constituição do Estado)” (TJSP – ADIn. nº 115.168-0/0-00)
“INCONSTITUCIONALIDADE.
Lei municipal que declara imóvel como de valor histórico e manda aplicar as
normas legais do processo de tombamento. Lei de efeito imediato, concreto e
especial, além de conter ordem a órgãos do Poder Executivo para que pratiquem
atos de sua exclusiva atribuição. Ofensa ao princípio da independência e
harmonia dos Poderes. Ação direta julgada procedente” (TJSP – ADIn. nº
45.502-0/0) (destacou-se).
“AÇÃO
CIVIL PÚBLICA. Fachada externa de imóvel tombada por lei municipal de
iniciativa de vereador e promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal de
Araraquara. Pretensão de obstar a destruição e/ou alteração do bem tombado, bem
como a reparação dos danos causados. Reconhecimento incidental da
inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 7.444/2011. Alegação de vício de
iniciativa e usurpação da competência privativa do Chefe do Poder Executivo
pela Câmara Municipal. Matéria a ser analisada pelo col. Órgão Especial
deste eg. Tribunal. Art. 97 da Constituição Federal e Súmula Vinculante nº 10
do eg. Supremo Tribunal Federal. Suspensão do julgamento. Remessa que se
determina” (TJSP – ApCv nº 9000459-49.2011.8.26.0037) (destacou-se). Inobstante
seja esse o entendimento consagrado, conforme aponta José dos Santos Carvalho
Filho, existe uma corrente doutrinária que entende ser possível que um
determinado bem seja tombado por meio da edição de competente lei. Nesse
sentido, ensina o festejado jurista, in verbis: “A questão que se põe,
contudo, é a de saber qual o tipo de ato pelo qual o Poder Público decreta o
tombamento. Parte da doutrina tem o entendimento de que a instituição tanto
pode ser fixada por ato administrativo como por lei. Por essa corrente de
pensamento [em nota, aponta Paulo Affonso Leme Machado (Ação civil pública e
tombamento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. p. 75) e Pontes de
Miranda (Comentários à constituição de 1967. São Paulo: Forense, 1972.
t. VI. p. 369)], tanto é competência do Executivo como do Legislativo a
instituição interventiva. Essa, porém, não parece ser a melhor doutrina, apesar
dos ilustres juristas que a defendem” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 764). Por
conseguinte, sem prejuízo do entendimento daqueles que advogam em sentido
contrário, verifica-se ser descabido proceder ao tombamento de bens históricos
por meio de lei, devendo o mesmo ocorrer, todavia, no âmbito do Poder
Executivo, ao cabo de competente processo administrativo.
Por
fim, pretendendo-se disciplinar os pormenores do processo administrativo
destinado a tombar bens histórico-culturais em seu território, suplementando as
legislações federal e estadual no que couber, ex vi do art. 24, inc.
VII, c/c art. 30, inc. II, ambos da CF/1988, entende-se que a iniciativa da
competente proposição deverá partir do Chefe do Poder Executivo e não do
Legislativo, sob pena de violação ao teor contido no art. 2º da Carta Magna,
que assenta o princípio da separação e harmonia dos Poderes da União. Nesse
sentido, já prolatou o eg. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, in
verbis:
“Ação direta de
inconstitucionalidade. Lei nº 2.446/2003, do Município de Ubatuba, que
instituiu o Livro do Tombo de Ubatuba, para fins de registro do inventário dos
bens integrantes do patrimônio histórico, artístico, arquitetônico e ambiental
do Município. Lei de iniciativa de vereador. Vício de iniciativa, considerando
que, em virtude da matéria nela regulada, a iniciativa é exclusiva do Chefe do Poder
Executivo. Violação dos arts. 5º e 144 da Constituição do Estado. Ação
julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do diploma legislativo
sob apreço” (TJSP – ADIn. nº 115.169.0/4-00) (destacou-se). Ante o exposto,
portanto, conclui-se que também não caberá ao Poder Legislativo desencadear
projeto de lei que objetive disciplinar, de forma suplementar, a condução do
procedimento administrativo necessário para tal desiderato, na medida em que a
sua iniciativa é reservada ao Chefe do Executivo.
Por Aniello dos Reis
Parziale – Advogado, membro do Corpo Jurídico da NDJ
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