Contratação Direta de Alimentação Escolar: Uma Hipótese de Dispensa de Licitação Não Arrolada na Lei federal nº 8.666/93

Dr. Aniello dos Reis Parziale - OAB/SP nº 259.960.  Advogado, Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, membro do Consultoria Jurídica da Editora NDJ desde 2007. É mestrando em Direito Econômico e Político pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Artigo publicado no BLC – Boletim de Licitações e Contratos – Dezembro/2009

1. Introdução

O Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, criado pela Lei federal nº 11.947/ 09, tem por objetivo contribuir para o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, a  aprendizagem, o rendimento escolar e a formação de hábitos alimentares saudáveis dos alunos, por meio de ações de educação alimentar e nutricional,  e da oferta de refeições que cubram as suas necessidades nutricionais durante o período letivo, articulando a produção de agricultores familiares  e as demandas das escolas para atendimento da alimentação escolar.

Com a finalidade de perseguir tais objetivos,o art. 14 da mencionada lei determina que no mínimo 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, no âmbito do PNAE, deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e quilombolas, podendo-se dispensar a instauração de licitação, conforme preconiza o § 1º.

Assim, cria-se uma hipótese distinta de dispensa de licitação, podendo apenas ser utilizada no âmbito da aquisição de alimentação escolar, cuja aplicabilidade é dissociada das hipóteses arroladas no art. 24 do Estatuto federal Licitatório.

2. O programa

O PNAE é uma modalidade do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, criado pela Lei nº 10.696/03, conforme estabelece o art. 5º do Dec. federal nº 6.447/08, alterado pelo Dec. nº 6.959/09, cuja finalidade é incentivar a agricultura familiar, compreendendo ações vinculadas à distribuição de produtos agropecuários para pessoas em situação de insegurança alimentar e à formação de estoques estratégicos. No âmbito do PAA, a contratação dos alimentos produzidos também é realizada com isenção de licitação, conforme estabelece o § 2º do art. 19 da mencionada lei, por preços de referência que não podem ser superiores nem inferiores aos praticados nos mercados regionais, até o limite de R$ 9.000,00 ao ano por agricultor familiar que se enquadre no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, exceto na modalidade incentivo à produção e consumo do leite, cujo limite é semestral.

3. Hipótese de dispensa de licitação não arrolada no Estatuto federal Licitatório

O § 1º do art. 14 da Lei federal nº 11.947, de 16.6.09, no âmbito do PNAE cria uma hipótese de contratação direta a qual não se encontra prevista no Estatuto federal Licitatório.

Poder-se-ia, a priori, estranhar a existência de permissivo que dispensa licitação esparso na legislação federal quando existe uma lei nacional que versa sobre normas gerais de licitação. Todavia, observe-se que esse não é o único caso em que encontramos dispositivos que afastam a licitação não arrolados entre os arts. 24 e 25 da Lei federal nº 8.666/93. Nesse sentido, a título de ilustração, o § 2º do art. 8º da Lei federal nº 11.652/08 autoriza a contratação da Empresa Brasil de Comunicação diretamente, dispensando-se, assim, o competente certame.

A própria Constituição Federal abarca tal possibilidade, na medida em que estabelece no inc. XXI do art. 37 que, “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública (...)” (grifamos).

Com efeito, se as exceções à regra de licitar estivessem, ou necessitassem estar, arroladas em apenas uma lei, o mandamento constitucional não seria grafado da forma mencionada, mas, sim, desta forma: “ressalvados os casos especificados na lei, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública (...)” (grifamos).

Corroborando nossa assertiva e concedendo outros exemplos acerca da criação de hipóteses  de dispensa de licitação em normas esparsas, ressalva o jurista Jorge Ulisses Jacoby Fernandes,  in verbis:

“No art. 24 da Lei nº 8.666/93, com a redação alterada pela Lei nº 8.883/94, foram estabelecidas originariamente vinte hipóteses em que é dispensável a licitação. A Lei nº 9.648/98 acresceu mais  quatro. Posteriormente,  novas leis vêm ampliando esse já extenso rol de novas hipóteses.
(...)
Há possibilidade de adventícias legislações esparsas inovarem o tema, reconhecendo outros casos de dispensa de licitação, como ocorreu com a Lei nº 8.880/94, (...) autorizando a contratação de institutos de pesquisas sem licitação. O que mais se evidencia no estudo da dispensa de licitação  é a falta de sistematização, o casuísmo, com que tem procedido o legislador. Incisos com má redação foram inseridos no art. 24 muitas vezes para regularizar a contratação considerada irregular pelo TCU.

No que tange a legislação posterior à Lei nº 8.883/94, a situação é de fácil equacionamento:
– se for lei federal que criar outras hipóteses de dispensa, poderá ser constitucional e válida” (Contratação Direta sem Licitação: Dispensa de Licitação; Inexigibilidade de Licitação: Comentários às Modalidades de Licitação, Inclusive o Pregão, 7ª ed., Belo Horizonte,Fórum, 2008, p. 304).

Acerca da aplicabilidade da hipótese de dispensa de licitação em relevo, deve levar-se em conta a sua regulamentação, fixada pela Lei nº 11.947/09 – Dec. nº 6.447/08 –, alterada pelo Dec. nº 6.959/09 e pela Resolução CD/FNDE nº 38, de 16.7.09, sendo incorreto associar a sua aplicação com os demais permissivos que afastam a licitação, constantes na Lei de Licitações, em especial com os limites por compra por agricultor familiar com o teto estabelecido no inc. II do art. 24.

Todavia, tendo em vista que o expediente trata de uma exceção à regra da obrigatoriedade de licitar, a implementação desse programa não admite interpretação ampliativa das suas diretrizes, devendo essa política pública ser implantada nos estritos termos do competente regulamento, a fim de evitar futuro questionamento pelos órgãos de controle.
Nesse sentido, ressalva Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, in verbis:

“De qualquer modo, como as  normas que versam sobre dispensa de licitação abrem exceção à regra da obrigatoriedade da  licitação, recomenda a hermenêutica que a interpretação seja sempre restritiva, não comportando ampliação” (ob. cit., p. 489).

4. Da implementação do programa

4.1. Necessidade da elaboração do cardápio da alimentação escolar

Em relação à operacionalização  do referido programa, o primeiro estágio fixado pela cartilha “Passo-a-passo para compra e venda  a agricultura familiar para a alimentação Escolar”,[2] criada pelo Ministério do Desenvolvimento  Agrário, é a elaboração do cardápio pelo nutricionista responsável técnico pelo PNAE, na forma do Anexo II da Resolução CD/FNDE nº 38, respeitando-se referências nutricionais, os hábitos alimentares, a cultura alimentar da localidade, pautando-se na sustentabilidade e diversificação agrícola da região e na alimentação saudável e adequada,  conforme estabelece o art. 15 da referida resolução.

Assim, deverão ser mapeados os produtos produzidos pela agricultura familiar e pelos  empreendedores familiares, priorizando os hábitos locais, dentre eles aqueles praticados em comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de quilombos, uma vez que, conforme o § 3º do dispositivo narrado, deverão conter no cardápio escolar alimentos variados, seguros, que respeitem a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento dos alunos e para a melhoria do rendimento escolar.

4.2. Publicação da aquisição dos alimentos

Tais informações devem ser enviadas para as Entidades Executoras – EE, ou seja, as secretarias  municipais ou estaduais de educação, conforme o inc. II do art. 6º, para que, na forma do art. 21 do referido regulamento, seja publicada a demanda de aquisições de gêneros alimentícios da agricultura familiar para alimentação escolar por meio de chamada pública de compra, em jornal de circulação local, regional, estadual ou nacional, quando houver, além de divulgar em seu sítio na Internet ou na forma de mural, em local público de ampla circulação.

Anote-se que se deve garantir a efetiva publicidade da aquisição dos alimentos àquelas comunidades desprovidas de acesso ao referido tipo de informação, como, por exemplo, comunidades  tradicionais indígenas e de remanescentes de quilombos, a fim de garantir que o cardápio da alimentação escolar contenha alimentos que respeitem a cultura alimentar da localidade, conforme estabelece o § 3º do art. 15 do regulamento.

4.3. Fixação dos preços (termo de referência)

Na forma do art. 23 da resolução estudada, na ocasião da definição dos preços para a aquisição dos gêneros alimentícios da agricultura familiar e dos empreendedores familiares rurais, a  entidade executora deverá considerar os preços de referência praticados no âmbito do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, criado pela Lei nº 10.696, de 2.6.03, de que trata o Dec. nº 6.447/ 08, alterado pelo Dec. nº 6.959/09.

Entende-se por preço de referência, na seara do referido programa, o preço médio pesquisado em âmbito local, regional, territorial, estadual e nacional, nessa ordem dos produtos da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural.

Nas localidades em que não houver definição de preços no âmbito do PAA, os preços de referência deverão ser calculados com base em um dos seguintes critérios:

I – Quando o valor da chamada pública da aquisição dos gêneros alimentícios da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural for de até R$ 100.000,00 por ano:

a) média dos preços pagos aos agricultores familiares por três mercados varejistas, priorizando a feira do produtor da agricultura familiar, quando houver; ou

b) preços vigentes de venda para o varejo, apurados junto a produtores, cooperativas, associações ou agroindústrias familiares em pesquisa no mercado local ou regional.

II – Quando o valor da chamada pública da aquisição dos gêneros alimentícios da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural for igual ou superior a R$ 100.000,00 por ano:

a) média dos preços praticados no mercado atacadista nos doze últimos meses, em se tratando de produto com cotação nas ceasas ou em outros mercados atacadistas, utilizando a fonte de informações de instituição oficial de reconhecida capacidade; ou

b) preços apurados nas licitações de compra de alimentos realizadas no âmbito da entidade executora em suas respectivas jurisdições, desde que em vigor; ou

c) preços vigentes, apurados em orçamento, junto a, no mínimo, três mercados atacadistas locais ou regionais.

4.4. Habilitação dos proponentes

Conforme estabelece o art. 22 da resolução mencionada, os fornecedores dos alimentos escolares serão agricultores familiares e empreendedores familiares rurais, detentores de Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – DAP física e/ou jurídica, conforme a Lei da Agricultura Familiar nº 11.326, de 24.7.06, e enquadrados no  Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, organizados em grupos formais e/ou informais.

Observe-se que os grupos informais deverão ser cadastrados junto à entidade executora por uma entidade articuladora, responsável técnica pela elaboração do projeto de venda de gêneros alimentícios da agricultura familiar para a alimentação escolar.

Em relação à entidade articuladora, esta deverá estar cadastrada no Sistema Brasileiro de Assistência e Extensão Rural – Sibrater ou ser sindicato de trabalhadores rurais, sindicato dos trabalhadores da agricultura familiar ou entidades credenciadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA para emissão da DAP.

As funções da entidade articuladora serão assessorar a articulação do grupo informal com o ente público contratante na relação de compra e venda, como também comunicar ao controle social local a existência do grupo, sendo este representado prioritariamente pelo Conselho de Alimentação Escolar – CAE, Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural – CMDR e pelo Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional – Comsea, quando houver.

Tal entidade não poderá receber remuneração, proceder a venda nem assinar como proponente. Não terá responsabilidade jurídica nem responsabilidade pela prestação de contas do grupo informal.

No processo de habilitação deverá ser apresentada à entidade executora por parte dos grupos informais de agricultores familiares a documentação fixada no § 2º (DAP de cada agricultor participante, CPF, projeto de venda e prova de atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso), e no caso dos grupos formais da agricultura familiar e de empreendedores familiares rurais constituídos em cooperativas e associações deverão ser apresentados os documentos arrolados no § 3º (DAP jurídica, CNPJ, cópia de certidões negativas junto ao INSS, FGTS, Receita Federal e dívidas ativas da União, cópia do Estatuto, projeto de venda e prova de atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso), ambos dispositivos constantes no art. 22 do regulamento.

Conforme estabelece o § 4º do art. 18 da resolução, “na análise das propostas e na aquisição,  deverão ser priorizadas as propostas de grupos do Município. Em não se obtendo as quantidades  necessárias, estas poderão ser complementadas com propostas de grupos da região, do território rural, do estado e do país, nesta ordem de prioridade”.

Em relação ainda à aquisição dos alimentos, conforme estabelece o § 4º do art. 25 da resolução,  deverá a entidade executora exigir apresentação de amostras para avaliação e seleção do produto a ser adquirido, as quais deverão ser submetidas a testes necessários, imediatamente após a fase de habilitação.

4.5. Contratação da demanda

No caso de existência de mais de um grupo formal ou informal participante do processo de  aquisição para a alimentação escolar, deve-se priorizar o fornecedor do âmbito local, desde que os preços sejam compatíveis com os vigentes no mercado local, resguardadas as condicionalidades previstas nos §§ 1º e 2º do art. 14 da Lei nº 11.947/09.

No processo de aquisição dos alimentos, as entidades executoras deverão comprar diretamente  dos grupos formais para valores acima de R$ 100.000,00 por ano.

Para valores de até R$ 100.000,00 por ano, a aquisição deverá ser feita de grupos formais e informais – nesta ordem –, resguardando-se o previsto no § 2º do art. 23 do regulamento estudado,  que estabelece que na definição dos preços para a aquisição dos gêneros alimentícios da agricultura familiar e dos empreendedores familiares rurais a entidade executora deverá considerar os preços de referência praticados no âmbito do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, de que trata o Dec. nº 6.447/08.  Nas localidades em que não houver definição de preços no âmbito do PAA, os preços de referência deverão ser calculados com base nos critérios previstos no art. 23, § 2º, da Resolução CD/FNDE nº 38/09.

A atualização dos preços de referência deverá ser realizada semestralmente.

Os gêneros alimentícios da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural adquiridos para  a alimentação escolar, que integram a lista dos produtos cobertos pelo Programa de Garantia de Preços para a Agricultura Familiar – PGPAF, não poderão ter preços inferiores a esses.

Anote-se que “o limite individual de venda do Agricultor Familiar e do Empreendedor Familiar Rural para a alimentação escolar deverá respeitar o valor máximo de R$ 9.000,00 (nove mil reais), por DAP/ano”, conforme estabelece o art. 24 do regulamento.

A contratação deverá ser instrumentalizada por meio do contrato de aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural, cuja minuta é fixada no Anexo IV da referida resolução.

4.6. Qualidade dos alimentos adquiridos

Os produtos da agricultura familiar e dos  empreendedores familiares rurais a serem fornecidos  para alimentação escolar serão gêneros  alimentícios, priorizando, sempre que possível, os alimentos orgânicos e/ou agroecológicos.

“Os produtos adquiridos para a clientela do PNAE deverão ser previamente submetidos ao controle de qualidade, na forma do Termo de Compromisso (anexo VI), observando-se a legislação pertinente”, conforme estabelece o art. 25 da resolução.

Os produtos alimentícios a serem adquiridos para a clientela do PNAE deverão atender ao disposto na legislação de alimentos, estabelecida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária/ Ministério da Saúde e pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Por fim, em relação à execução do contrato de fornecimento de alimentação, deverão, ainda, ser observadas as obrigações constantes na minuta do contrato de aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural, cuja minuta, novamente, encontra-se anexada na referida resolução.




[1] Artigo publicado no Boletim de Licitações e Contrato  - BLC em dezembro de 2009, p. 1132.
[2] Disponível em http://www.territoriosdacidadania.gov.br/portal/saf/arquivos/view/alimenta-o-escolar/passoapasso.pdf.
Acesso em 7.10.09.

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