Dr. Aniello dos Reis Parziale - OAB/SP nº 259.960. Advogado, Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, membro do Consultoria Jurídica da Editora NDJ desde 2007. É mestrando em Direito Econômico e Político pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Artigo publicado no BLC – Boletim de Licitações e Contratos – Dezembro/2009
1. Introdução
O Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE,
criado pela Lei federal nº 11.947/ 09, tem por objetivo contribuir para o
crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, a aprendizagem, o rendimento escolar e a
formação de hábitos alimentares saudáveis dos alunos, por meio de ações de
educação alimentar e nutricional, e da
oferta de refeições que cubram as suas necessidades nutricionais durante o
período letivo, articulando a produção de agricultores familiares e as demandas das escolas para atendimento da
alimentação escolar.
Com a finalidade de perseguir tais objetivos,o art.
14 da mencionada lei determina que no mínimo 30% dos recursos repassados pelo
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, no âmbito do PNAE,
deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura
familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando
os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e
quilombolas, podendo-se dispensar a instauração de licitação, conforme
preconiza o § 1º.
Assim, cria-se uma hipótese distinta de dispensa de
licitação, podendo apenas ser utilizada no âmbito da aquisição de alimentação
escolar, cuja aplicabilidade é dissociada das hipóteses arroladas no art. 24 do
Estatuto federal Licitatório.
2. O programa
O PNAE é uma modalidade do Programa de Aquisição de
Alimentos – PAA, criado pela Lei nº 10.696/03, conforme estabelece o art. 5º do
Dec. federal nº 6.447/08, alterado pelo Dec. nº 6.959/09, cuja finalidade é
incentivar a agricultura familiar, compreendendo ações vinculadas à distribuição
de produtos agropecuários para pessoas em situação de insegurança alimentar e à
formação de estoques estratégicos. No âmbito do PAA, a contratação dos
alimentos produzidos também é realizada com isenção de licitação, conforme
estabelece o § 2º do art. 19 da mencionada lei, por preços de referência que
não podem ser superiores nem inferiores aos praticados nos mercados regionais,
até o limite de R$ 9.000,00 ao ano por agricultor familiar que se enquadre no
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, exceto na
modalidade incentivo à produção e consumo do leite, cujo limite é semestral.
3. Hipótese de
dispensa de licitação não arrolada no Estatuto federal Licitatório
O § 1º do art. 14 da Lei federal nº 11.947, de
16.6.09, no âmbito do PNAE cria uma hipótese de contratação direta a qual não
se encontra prevista no Estatuto federal Licitatório.
Poder-se-ia, a priori, estranhar a existência de
permissivo que dispensa licitação esparso na legislação federal quando existe
uma lei nacional que versa sobre normas gerais de licitação. Todavia,
observe-se que esse não é o único caso em que encontramos dispositivos que
afastam a licitação não arrolados entre os arts. 24 e 25 da Lei federal nº
8.666/93. Nesse sentido, a título de ilustração, o § 2º do art. 8º da Lei
federal nº 11.652/08 autoriza a contratação da Empresa Brasil de Comunicação
diretamente, dispensando-se, assim, o competente certame.
A própria Constituição Federal abarca tal possibilidade,
na medida em que estabelece no inc. XXI do art. 37 que, “ressalvados os casos especificados
na legislação, as obras, serviços, compras
e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública (...)”
(grifamos).
Com efeito, se as exceções à regra de licitar
estivessem, ou necessitassem estar, arroladas em apenas uma lei, o mandamento
constitucional não seria grafado da forma mencionada, mas, sim, desta forma:
“ressalvados os casos especificados na lei,
as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de
licitação pública (...)” (grifamos).
Corroborando nossa assertiva e concedendo outros
exemplos acerca da criação de hipóteses de
dispensa de licitação em normas esparsas, ressalva o jurista Jorge Ulisses
Jacoby Fernandes, in verbis:
“No art. 24 da Lei nº 8.666/93, com a redação
alterada pela Lei nº 8.883/94, foram estabelecidas originariamente vinte
hipóteses em que é dispensável a licitação. A Lei nº 9.648/98 acresceu
mais quatro. Posteriormente, novas leis vêm ampliando esse já extenso rol
de novas hipóteses.
(...)
Há possibilidade de adventícias legislações esparsas
inovarem o tema, reconhecendo outros casos de dispensa de licitação, como
ocorreu com a Lei nº 8.880/94, (...) autorizando a contratação de institutos de
pesquisas sem licitação. O que mais se evidencia no estudo da dispensa de
licitação é a falta de sistematização, o
casuísmo, com que tem procedido o legislador. Incisos com má redação foram
inseridos no art. 24 muitas vezes para regularizar a contratação considerada irregular
pelo TCU.
No que tange a legislação posterior à Lei nº
8.883/94, a situação é de fácil equacionamento:
– se for lei federal que criar outras hipóteses de
dispensa, poderá ser constitucional e válida” (Contratação Direta sem Licitação:
Dispensa de Licitação; Inexigibilidade de Licitação: Comentários às Modalidades
de Licitação, Inclusive o Pregão, 7ª ed., Belo Horizonte,Fórum, 2008, p. 304).
Acerca da aplicabilidade da hipótese de dispensa de
licitação em relevo, deve levar-se em conta a sua regulamentação, fixada pela
Lei nº 11.947/09 – Dec. nº 6.447/08 –, alterada pelo Dec. nº 6.959/09 e pela
Resolução CD/FNDE nº 38, de 16.7.09, sendo incorreto associar a sua aplicação
com os demais permissivos que afastam a licitação, constantes na Lei de
Licitações, em especial com os limites por compra por agricultor familiar com o
teto estabelecido no inc. II do art. 24.
Todavia, tendo em vista que o expediente trata de uma
exceção à regra da obrigatoriedade de licitar, a implementação desse programa
não admite interpretação ampliativa das suas diretrizes, devendo essa política
pública ser implantada nos estritos termos do competente regulamento, a fim de
evitar futuro questionamento pelos órgãos de controle.
Nesse sentido, ressalva Jorge Ulisses Jacoby
Fernandes, in verbis:
“De qualquer modo, como as normas que versam sobre dispensa de licitação
abrem exceção à regra da obrigatoriedade da
licitação, recomenda a hermenêutica que a interpretação seja sempre
restritiva, não comportando ampliação” (ob. cit., p. 489).
4. Da
implementação do programa
4.1.
Necessidade da elaboração do cardápio da alimentação escolar
Em relação à operacionalização do referido programa, o primeiro estágio
fixado pela cartilha “Passo-a-passo para compra e venda a agricultura familiar para a alimentação
Escolar”,[2]
criada pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário, é a elaboração do cardápio pelo nutricionista responsável técnico
pelo PNAE, na forma do Anexo II da Resolução CD/FNDE nº 38, respeitando-se referências
nutricionais, os hábitos alimentares, a cultura alimentar da localidade,
pautando-se na sustentabilidade e diversificação agrícola da região e na
alimentação saudável e adequada,
conforme estabelece o art. 15 da referida resolução.
Assim, deverão ser mapeados os produtos produzidos
pela agricultura familiar e pelos
empreendedores familiares, priorizando os hábitos locais, dentre eles
aqueles praticados em comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de
quilombos, uma vez que, conforme o § 3º do dispositivo narrado, deverão conter
no cardápio escolar alimentos variados, seguros, que respeitem a cultura, as
tradições e os hábitos alimentares saudáveis, contribuindo para o crescimento e
desenvolvimento dos alunos e para a melhoria do rendimento escolar.
4.2. Publicação
da aquisição dos alimentos
Tais informações devem ser enviadas para as Entidades
Executoras – EE, ou seja, as secretarias municipais ou estaduais de educação, conforme
o inc. II do art. 6º, para que, na forma do art. 21 do referido regulamento,
seja publicada a demanda de aquisições de gêneros alimentícios da agricultura
familiar para alimentação escolar por meio de chamada pública de compra, em
jornal de circulação local, regional, estadual ou nacional, quando houver, além
de divulgar em seu sítio na Internet ou na forma de mural, em local público de
ampla circulação.
Anote-se que se deve garantir a efetiva publicidade
da aquisição dos alimentos àquelas comunidades desprovidas de acesso ao
referido tipo de informação, como, por exemplo, comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de
quilombos, a fim de garantir que o cardápio da alimentação escolar contenha
alimentos que respeitem a cultura alimentar da localidade, conforme estabelece
o § 3º do art. 15 do regulamento.
4.3. Fixação
dos preços (termo de referência)
Na forma do art. 23 da resolução estudada, na ocasião
da definição dos preços para a aquisição dos gêneros alimentícios da
agricultura familiar e dos empreendedores familiares rurais, a entidade executora deverá considerar os preços
de referência praticados no âmbito do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA,
criado pela Lei nº 10.696, de 2.6.03, de que trata o Dec. nº 6.447/ 08,
alterado pelo Dec. nº 6.959/09.
Entende-se por preço de referência, na seara do
referido programa, o preço médio pesquisado em âmbito local, regional,
territorial, estadual e nacional, nessa ordem dos produtos da agricultura
familiar e do empreendedor familiar rural.
Nas localidades em que não houver definição de preços
no âmbito do PAA, os preços de referência deverão ser calculados com base em um
dos seguintes critérios:
I – Quando o valor da chamada pública da aquisição
dos gêneros alimentícios da agricultura familiar e do empreendedor familiar
rural for de até R$ 100.000,00 por ano:
a) média dos preços pagos aos agricultores familiares
por três mercados varejistas, priorizando a feira do produtor da agricultura
familiar, quando houver; ou
b) preços vigentes de venda para o varejo, apurados
junto a produtores, cooperativas, associações ou agroindústrias familiares em
pesquisa no mercado local ou regional.
II – Quando o valor da chamada pública da aquisição
dos gêneros alimentícios da agricultura familiar e do empreendedor familiar
rural for igual ou superior a R$ 100.000,00 por ano:
a) média dos preços praticados no mercado atacadista
nos doze últimos meses, em se tratando de produto com cotação nas ceasas ou em
outros mercados atacadistas, utilizando a fonte de informações de instituição
oficial de reconhecida capacidade; ou
b) preços apurados nas licitações de compra de
alimentos realizadas no âmbito da entidade executora em suas respectivas
jurisdições, desde que em vigor; ou
c) preços vigentes, apurados em orçamento, junto a,
no mínimo, três mercados atacadistas locais ou regionais.
4.4.
Habilitação dos proponentes
Conforme estabelece o art. 22 da resolução
mencionada, os fornecedores dos alimentos escolares serão agricultores
familiares e empreendedores familiares rurais, detentores de Declaração de
Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – DAP
física e/ou jurídica, conforme a Lei da Agricultura Familiar nº 11.326, de
24.7.06, e enquadrados no Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, organizados em grupos
formais e/ou informais.
Observe-se que os grupos informais deverão ser
cadastrados junto à entidade executora por uma entidade articuladora,
responsável técnica pela elaboração do projeto de venda de gêneros alimentícios
da agricultura familiar para a alimentação escolar.
Em relação à entidade articuladora, esta deverá estar
cadastrada no Sistema Brasileiro de Assistência e Extensão Rural – Sibrater ou
ser sindicato de trabalhadores rurais, sindicato dos trabalhadores da
agricultura familiar ou entidades credenciadas pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrário – MDA para emissão da DAP.
As funções da entidade articuladora serão assessorar
a articulação do grupo informal com o ente público contratante na relação de
compra e venda, como também comunicar ao controle social local a existência do
grupo, sendo este representado prioritariamente pelo Conselho de Alimentação
Escolar – CAE, Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural – CMDR e pelo
Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional – Comsea, quando
houver.
Tal entidade não poderá receber remuneração, proceder
a venda nem assinar como proponente. Não terá responsabilidade jurídica nem
responsabilidade pela prestação de contas do grupo informal.
No processo de habilitação deverá ser apresentada à
entidade executora por parte dos grupos informais de agricultores familiares a
documentação fixada no § 2º (DAP de cada agricultor participante, CPF, projeto
de venda e prova de atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando
for o caso), e no caso dos grupos formais da agricultura familiar e de
empreendedores familiares rurais constituídos em cooperativas e associações
deverão ser apresentados os documentos arrolados no § 3º (DAP jurídica, CNPJ,
cópia de certidões negativas junto ao INSS, FGTS, Receita Federal e dívidas
ativas da União, cópia do Estatuto, projeto de venda e prova de atendimento de
requisitos previstos em lei especial, quando for o caso), ambos dispositivos
constantes no art. 22 do regulamento.
Conforme estabelece o § 4º do art. 18 da resolução,
“na análise das propostas e na aquisição, deverão ser priorizadas as propostas de grupos
do Município. Em não se obtendo as quantidades necessárias, estas poderão ser complementadas
com propostas de grupos da região, do território rural, do estado e do país,
nesta ordem de prioridade”.
Em relação ainda à aquisição dos alimentos, conforme
estabelece o § 4º do art. 25 da resolução, deverá a entidade executora exigir
apresentação de amostras para avaliação e seleção do produto a ser adquirido,
as quais deverão ser submetidas a testes necessários, imediatamente após a fase
de habilitação.
4.5.
Contratação da demanda
No caso de existência de mais de um grupo formal ou
informal participante do processo de aquisição
para a alimentação escolar, deve-se priorizar o fornecedor do âmbito local,
desde que os preços sejam compatíveis com os vigentes no mercado local,
resguardadas as condicionalidades previstas nos §§ 1º e 2º do art. 14 da Lei nº
11.947/09.
No processo de aquisição dos alimentos, as entidades
executoras deverão comprar diretamente dos
grupos formais para valores acima de R$ 100.000,00 por ano.
Para valores de até R$ 100.000,00 por ano, a
aquisição deverá ser feita de grupos formais e informais – nesta ordem –,
resguardando-se o previsto no § 2º do art. 23 do regulamento estudado, que estabelece que na definição dos preços
para a aquisição dos gêneros alimentícios da agricultura familiar e dos
empreendedores familiares rurais a entidade executora deverá considerar os preços
de referência praticados no âmbito do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA,
de que trata o Dec. nº 6.447/08. Nas
localidades em que não houver definição de preços no âmbito do PAA, os preços
de referência deverão ser calculados com base nos critérios previstos no art.
23, § 2º, da Resolução CD/FNDE nº 38/09.
A atualização dos preços de referência deverá ser
realizada semestralmente.
Os gêneros alimentícios da agricultura familiar e do
empreendedor familiar rural adquiridos para a alimentação escolar, que integram a lista
dos produtos cobertos pelo Programa de Garantia de Preços para a Agricultura
Familiar – PGPAF, não poderão ter preços inferiores a esses.
Anote-se que “o limite individual de venda do
Agricultor Familiar e do Empreendedor Familiar Rural para a alimentação escolar
deverá respeitar o valor máximo de R$ 9.000,00 (nove mil reais), por DAP/ano”,
conforme estabelece o art. 24 do regulamento.
A contratação deverá ser instrumentalizada por meio
do contrato de aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar e do
empreendedor familiar rural, cuja minuta é fixada no Anexo IV da referida
resolução.
4.6. Qualidade dos alimentos adquiridos
Os produtos da agricultura familiar e dos empreendedores familiares rurais a serem
fornecidos para alimentação escolar
serão gêneros alimentícios, priorizando,
sempre que possível, os alimentos orgânicos e/ou agroecológicos.
“Os produtos adquiridos para a clientela do PNAE
deverão ser previamente submetidos ao controle de qualidade, na forma do Termo
de Compromisso (anexo VI), observando-se a legislação pertinente”, conforme
estabelece o art. 25 da resolução.
Os produtos alimentícios a serem adquiridos para a
clientela do PNAE deverão atender ao disposto na legislação de alimentos, estabelecida
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária/ Ministério da Saúde e pelo
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Por fim, em relação à execução do contrato de
fornecimento de alimentação, deverão, ainda, ser observadas as obrigações constantes
na minuta do contrato de aquisição de gêneros alimentícios da agricultura
familiar e do empreendedor familiar rural, cuja minuta, novamente, encontra-se
anexada na referida resolução.
Nenhum comentário:
Postar um comentário